Aprender com Lisboa, revista Matriz


Aprender com Lisboa *1

Lisboa é não só um acumular de contribuições de povos que por aqui foram passando e ficando, deixando o seu lastro impresso na linguagem urbana da cidade (tal como Schliemann encontrou ao escavar na mítica Tróia de Homero, revelando camadas sucessivas de urbanização feita ao longo de milhares de anos com cidades sobre cidades) como também o resultado de repetidas convulsões sociais, naturais e mecânicas que lhe foram distendendo - alterando - deformando e conformando o casco urbano até à actualidade. Ao "uma cidade é resultado das diversas mudanças que ocorrem na sociedade" de Bonet Correa (1989) associo ao porvir da cidade de Lisboa a particularidade da convivência com a catástrofe e a heróica capacidade de a ela sobrevir que não encontra correspondente em dimensão em nenhum outro exemplo contemporâneo; recusando necessariamente conter nesta afirmação as razias proporcionadas pela mão humana nos bombardeamentos da II Guerra Mundial. *2

Se após o grande terramoto de 1755 Lisboa se preocupou em existir, fê-lo através da persistência humana que não foi suficiente para recuperar Antioquia ou Creta do colapso e ao persistir fê-lo empregando o que de mais avançado existia tecnologicamente como sejam a aplicação em larga escala da construção anti-sísmica ou o nascimento da sismologia como ciência. *3 *4 A Lisboa pombalina que surgiu então é largamente conhecida assim como também são hoje facilmente reconhecidas as estruturas gaiola então empregues como sustentáculo dos edifícios e que foram verdadeiramente revolucionárias - o que nos interessa não é essa visão dispersa sobre a cidade em aspectos que consideramos acessórios no seu compreender como um todo, mas queremos despoletar e apurar um sentido crítico que se apoie numa percepção da urbe como um organismo em constante mutação e influenciado por diversos factores sociais e históricos.

Aprender com Lisboa é um afirmar de um interesse profundo em ir mais além no entendimento da cidade (e não só Lisboa - mas sim a compreensão da entidade Cidade ao longo de todo o seu largo espectro, desde a fundação e crescimento ao ocaso ou actualidade) do que um corriqueiro caminhar desinteressado pode revelar. Uma observação mais demorada da "paisagem urbana" *5 fortemente alicerçada na memória colectiva e histórica, que vença as barreiras arquitectónicas que nos levantam a visão ao ver-se obstruída, as de distância que a velocidade do automóvel veio vencer em detrimento da percepção da cidade em proximidade e as topográficas, que foram domadas em alguma medida em Lisboa pelo advento da máquina. A previsibilidade imediata na compreensão do tecido urbano envolvente e os automatismos quase barrocos nos percursos diários tão bem identificados por Kevin Lynch em "A Imagem da Cidade" (1960) é algo que se pretende atenuar em favor de um conhecimento transversal do objecto urbano através da rotatividade na exploração e análise de experiências específicas (intervenções e deambulações) e casos (case studies) no seio da matriz da cidade consolidada. E juntar-lhe ainda matizes literárias, cinéfilas, musicais e outras que não são despiciendas na construção de uma crítica analítica de cidade. *6

Perceber assim - voltando à questão do terramoto de 1755 e à porção de cidade então (re)construída e a título de exemplo do entendimento de cidade que pretendemos, que a toponímia empregue na Baixa Pombalina corresponde não só à localização das lojas dos profissionais de determinado ramo (como o facto dos ourives de Ouro estarem localizados na Rua do Ouro ou Aúrea e dos douradores na Rua dos Douradores, exemplificando) mas mesmo à manutenção da memória da cidade existente antes da catástrofe. A Rua do Ouro corresponde aproximadamente à anterior Rua dos Ourives do Ouro existente antes do terramoto, a da Prata à anterior Rua dos Ourives da Prata e por aí além. Foi considerada como essencial a preservação dessa memória de funções e toponímia no processo de reconstrução bem como assim nos templos e praças que foram implantadas o mais coincidentemente possível com o existente antes do terramoto. Assim o Terreiro do Paço (Praça do Comércio) corresponde ao anterior Terreiro onde existia o Paço Real e a Praça D. Pedro IV ao anterior Rossio. É interessante notar como a tradição e memória estava de tal forma enraizada que nesta foi recuperado imediatamente o topónimo de Rossio, até hoje. De reparar também o facto curioso de que a expressão Bota-Abaixo surgiu durante o processo de demolição da Baixa em trabalho de preparação para a reconstrução, ao ser atribuído esse nome ao responsável pelo uso da pólvora no rebentamento dos edifícios e ruínas que tinham sobrevivido.

Lisboa "cidade triste e alegre" *7 merece um olhar mais atento e uma outra percepção mais aprofundada em questões de ser e fazer cidade - é premente gerar debate e discurso crítico para que a cidade cresça mais sustentavelmente e para que não se perca em percalços de acidente e desenfreamento urbanístico.

Notas :

*1 Título adaptado do livro "Learning from Las Vegas" de Venturi, Brown e Izenour (1972) e apropriado depois por Barrie e Shelton em "Learning from Japanese Cities" (1999)
*2 Sobre cidade Vs catástrofe ler o texto "The City-as-Target, or Perpetuacion and Death" de Bishop e Clancey (2004)
*3 Sobre os efeitos do terramoto a nível do pensamento humano ler "Candide, ou L'Optimisme" de Voltaire (1759)
*4 Sobre a figura do Marquês de Pombal como grande obreiro dessa nova Lisboa ver o n15/16 da Revista Camões
*5 De "A Paisagem Urbana" por Gordon Cullen (1964)
*6 Como "Lisboa - What the Tourist Should See" (cerca de 1925) de Fernando Pessoa ou "Lisbon Story" de Win Wenders (1995) sobre poesia de Pessoa e Álvaro de Campos | Sobre o primeiro ver também o documentário "Os Mistérios de Lisboa" por José Fonseca e Costa (2009)
*7 Lisbon Revisited (1926), Álvaro de Campos

Rafael Vieira, Arqto {{WATEB}}